top of page
Três zumbis

O silêncio é um amigo que nunca trai (Confúcio)

O que me preocupa não é o grito dos maus. É o silêncio dos bons (Martin Luter King)

o SILÊNCIO é a virtude
dos loucos (Francis Bacon)

silêncio literatura fantástica

 DOENÇA, SILÊNCIO OU SEGREDO?

Que tanto frio ele sente para andar com aquele capote pesado, feito de lã animal, quase uma crina, a cobrir-lhe o corpo todo, dos pés até o pescoço, como se aqui fosse um país de inverno rigoroso e baixas temperaturas? E por que quase não fala com as pessoas, e quando fala é só o mínimo, aquilo que não pode deixar de ser dito, coisas particulares, pessoais e de negócio, reduzidas ao sussurro? Sim, porque mudo de todo não é, que não usa a linguagem dos sinais e, as vezes, é possível ouvir sua voz baixa, seca e pausada. Solteiro, mora nos fundos do armazém, onde vive, negocia e ouve rádio.

Foi sempre assim? Uns dizem que não - já foi falante e loquaz e falava alto, até-, outros dizem que sim, - já o conheceram taciturno como é hoje -, desde menino era estranho e arredio. Uma coisa é certa. Ninguém nunca o viu sorrir.

O que guarda aquela capa? Que mal ou segredo ali se esconde? O que será? Uma doença? Uma deformidade? Ninguém sabe. Nunca foi visto nu, tomando banho ou trocando de roupa. Sob aquele capote pode haver tudo e não haver nada.

Uns dizem que a capa nada esconde, nada encobre. Dizem que ele a usa como uma espécie de luto, uma forma de mostrar pesar; desgosto por ter sido, um da, rejeitado pela moça que conseguiu acelerar seu coração numa disparada louca, que de tão louca lhe tirou parte do tino e do bom senso, e o lançou neste estado calamitoso e amedrontador?

Pode ser que sob o capote haja todos os segredos enormes, ou haja o negrume de sua ausência, forma e modo de ser dos zumbis e almas condenadas.

Também diziam que ele era um desses homens que carregam uma mulher dentro de si e sendo assim, sofria, pois pensa como homem e sente como mulher, e isto é coisa capaz de levar as pessoas que assim são ao mutismo, ao retraimento, à solidão.

Que outro qualquer segredo pode guardar aquela capa de crina e silêncio?

Um raboo, escamoso e de ponta bifurcada, próprios de anjos decaídos?

Um corpo ressecado, cinzento, pele grudada nos ossos?

Doença grande?

Purulências alastradas, dessas que escorrem plasma e pus, sem remédio nem alívio?

Um corpo coberto de escamas, todo o corpo?

Um grande lagarto e não um ser humano como outro qualquer?

Unhas fendidas, como um porco? Curvas como as de um gavião?

Tudo isso são perguntas. O resto são sussurros dos que dizem tê-lo visto tomando banho nos açudes, a altas horas d anoite.

A capa escode seu corpo peludo de um macaco.

Ele é um lobisomem que â noite sai para chupar o sangue de bois, jumentos, cabras e cabritos. 

O silêncio e a capa preta guardam esse grande segredo. Segredo que todos gostariam de desvendar.

segredo que pode ser um corpo sem pele, com a carne sangrando, como se houvesse sido esfolado, um castigo eterno para uma falta inominável.

E se tal capa escondesse somente um esqueleto guardando um coração pulsante?

Ou se nada de anormal houver por baixo desta capa, a não ser uma dor, somente uma dor, incessante e indefinida dor que muitos seres humanos carregam?

E alu, nunca um só dia se passou sem que alguém se perguntasse que segredo esconde a capa de crina de Francisco.

Esconde o medo de se ver decrépito?

Esconde a doença da velhice?

Esconde o desejo nunca satisfeito e que teima em nunca se ir?

Esconde a fome de um corpo, de um pecado?

Esconde o ódio, o mal amargo, o que trava a boa, turva os olhos e faz definhar?

Ou guarda um amor, como em um cárcere, prisioneiro?

Quando ele morreu, todos viram que sob a capa nada havia. Ela guardava apenas a ausência do seu corpo; ela cobria o nada, um vazio igual à noite que cobre os tempos; que seu rosto, única coisa que as pessoas sabiam ser real, era apenas uma máscara, agora rígida e caída a um canto, com um sorriso que Francisco nunca havia antes ostentado. 

bottom of page