"Assim, convido o leitor a se sentir também nessa casa de fantasia "
(Nivaldete Ferreira)

O carro
O CARRO
(Geraldo Maciel)
Para Marcos Wanderley
In memoriam
A lua irrompia plena por trás do risco ondulado que separava O céu e a terra ao nascente. Chico via aquela maravilha deformada pelo cromado do farol que acabava de polir. O polimento era o último gesto da jornada daquele dia e fim de um trabalho que já durava quase seis anos: à lenta tarefa de construir um carro, sem o suporte da engenharia e do dinheiro farto que, se não são determinantes nestes casos, pelo menos alivia a tarefa de quem resolveu cometer essa espécie de desatino.
Chico era maluco, pois trabalhar com combustão interna, eletricidade, magnetismo, torque, torção e ciências semelhantes era coisa quase impensável numa terra onde só se faziam cangas e cocões, e mestre era quem conseguia dispor o sebo, o carvão e o aperto dos eixos de tal forma que o carro-de-boi cantasse como se um bicho sofredor fosse.
E o maluco acabava de fazer um carro, que agora estava brilhando ali na sua frente, tão bonito que competia com a lua que ele contemplava através da superfície cromada e polida do farol. Chico era quase um engenheiro, se não é exagero dar esse nome a quem era mecânico, sabia alguma coisa de eletricidade, conhecia de perto os motores a explosão e gostava das engrenagens, da sinfonia rouca dos pistões, da harmonia graciosa das bielas, do bailado dos
balancins.
Aprendeu esses ofícios consertando bicicletas, reparando velhos motores, fazendo andar relógios de parede, consertando prensas de algodão e alguns motores a gás pobre. Com o tempo, ele foi aumentando e modernizando seu conhecimento até ser capaz de consertar automóveis, eletrodomésticos, geradores e toda essa maquinaria miúda que já naquela época existia.
Seu conhecimento das artes mecânicas o levou àquela profissão, e a profissão o obrigou a construir um galpão amplo, meio afastado da cidade, onde consertava tudo que tivesse algum engenho humano embutido em sua confecção, tudo que parecesse um autômato ou fosse destes uma boa!
imitação. E como são muitos esses artefatos e engenhos, mesmo ali onde os homens são simples e as letras poucas, sua oficina mais parecia um mostruário de ciências e técnicas: antigas, já que altas tecnologias e novidades pouco apareciam ali naquela cidade, onde o tempo é ronceiro e o dia às vezes em quase trinta horas.
A oficina de Chico era um meio-termo entre um laboratório desarrumado e um depósito de ferro velho. Ali se encontrava de tudo, o que tornava a oficina de Chico fascinante como uma sucata.
Ali ele consertava, interferia e penetrava no âmago das técnicas e ciências, pelo menos dessa ciência que chega para uso e gasto do povo.
Enquanto consertava, reparava, construía, punha e repunha o que o uso, o tempo e o descuido haviam desgastado - seu mister diário para ganhar a vida - Chico ia juntando peças. comprando outras, fazendo algumas ele próprio e, ao cabo de alguns anos de trabalho e persistência tinha guardado e catalogado quase tudo que precisava para construir um carro, um sonho que ele acalentou durante quase dez anos.
A partir desse sonho que o arrebatou como os adolescentes são arrebatados pela paixão, amou perdidamente os automóveis e foi tomado pela vontade de ter um. Chico começou a ponderar sobre o carro que gostaria de ter. Automóvel como esses de rabos de peixe ou baratinhas ou mesmo esses clássicos e arredondados, desses que abaixam a capora de lona, não lhe pareceu ser adequado para as estradas que havia por ali, nem muito menos para seu uso e para suas posses.
Desses e de muitos outros raciocínios, nasceu na sua cabeça o projeto de um carro que, se não era um conversível, pelo menos aliviava o fogo de sua paixão e punha cobro no seu ardente desejo de posse. O carro teria que ser bonito, forte e possível de ser feito. Teria uma boléia para quatro pessoas, assentos estofados e um porta-malas capaz de transportar coisas que não fossem muito pesadas ou de volume muito grande. Tudo isto sem dispensar os detalhes da buzina, dos faróis, dos pneus faixa branca e de alguns cromados na lataria que sempre dão brilho e chamam a atenção em um transporte.
Antes de começar aquela empreitada, na fase ainda de amadurecimento do projeto em sua cabeça, ele sonhava com o carro, às vezes delirava, tinha febres, pois não conseguia completar o projeto. O carro aparecia sempre por
acabar, ora sem os pneus, ora sem a boléia, ora sem os assentos; outras vezes, lhe faltava a parte de trás, quando não lhe aparecia como um amontoado de peças espalhadas pelo chão, a pedir sua perícia e seu engenho.
Sofreu mais de um ano nessa fase de sonhos e pesadelos, até que um dia sonhou com o carro completo. No sonho, ele flutuava a mais ou menos um metro do solo e girava lentamente, como se estivesse se exibindo de propósito para o extasiado Chico. Depois disto, ele nunca mais sonhou com o carro. Em compensação, conseguia imaginá-lo inteirinho em sua cabeça. Tão nítida era essa lembrança, que ele tinha a impressão de poder projetá-la na parede, ou mesmo no próprio ar, como se fosse um holograma. Então começou a construção.
Por causa da urgência, do trabalho e da importância do projeto, Chico adiou o casamento para quando terminasse o carro. O carro de Chico não era um buick, nem um oldsmobile, muito menos um cabriolet ou um ford vinte e nove. Seu carro era um projeto pessoal, fruto de sua inteligência e posses, uma mistura de todos eles, construído sem desenhos, croquis, maquetes, ou outros detalhamentos, mas tão provido de capricho e dedicação, que mais parecia um carro de fábrica. Pelo menos na sua cabeça.
Quando o projeto foi tomando corpo, o que se via, ou melhor, o que Chico via, já que ninguém podia ver o carro antes dele ficar pronto, era quase a perfeição. E o carro — oi tomando jeito de carro. Suspensão, eixos, feixes de mola. — cubos, rodas, transmissão, o carro tomando jeito. Motor, cabine, assentos, guarda-lamas, pára-choques, faróis, retrovisores, limpador de pára-brisa, buzina, cromados, pneus, vidros. Até que fica pronto o carro de Chico, um ano depois de começada a montagem e quase seis após à
decisão de construí-lo.
E funcionaria? Não teria Chico cometido nenhum erro que os homens sempre cometem? Não teria ele apertado demais em algum ponto, deixado frouxa esta ou aquela peça? Não teria trocado o positivo com o negativo ou deixado de lado uma minúscula porca ou engrenagem naquela misteriosa e sempre temida caixa de marchas?
Todos fizeram essa pergunta quando, afinal, souberam do ousado projeto do mecânico. Chico não se preocupou em responder. Tudo seria respondido quando ele trouxesse, empurrando, o carro para fora do galpão e, na frente de todos, como se fosse uma inauguração, acionasse a chave de ignição e botasse o motor para uncionar. Quem viver verá, dizia Chico aos amigos, num de seus poucos arrotos de autoconfiança.
Estando tudo conforme o planejado, Chico marcou a data da primeira ignição para um dia de feira, quando teria uma platéia bem maior e poderia saborear a admiração dos seus conterrâneos. Depois, como carro ali era coisa ainda rara, quem sabe não poderia aliviar suas alquebradas finanças, cobrando algum dinheiro por um pequeno passeio pelas ruas da cidade? Assim se fazia com as bicicletas, por que não com um automóvel?
E Chico, enquanto confere uma coisa aqui, outra ali, imagina seu carro fazendo poeira na estrada, no passeio inaugural, pensa no casamento, na sua noiva e se vê levando a de carro até a igreja e de lá retornando já casados.
Com esses anos de trabalho, sacrifícios, perseverança e criatividade, Chico Pontes construiu seu carro. O belo carro que ele havia imaginado há tempos atrás. Único, diferente de todos. Se em alguns aspectos chegava a perder
para os importados, pois não tinha a linha dos Impalas, noutros lhes passava a perna, desde que se valorizasse o aprumo, suficiente para deleitar muita gente e o desempenho, capaz de fazer inveja a todos.
Como um pai vaidoso, Chico achava que, na sua simplicidade, seu carro tinha a elegância e a imponência dos buicks, a classe dos cabriolets. Contando com um pouco de exagero e com a poesia que o álcool coloca na cabeça dos artistas, seu carro podia ser comparado a todo e qualquer artefato que andasse sobre quatro rodas.
Ainda vendo a lua através do cromado, deu um passo para trás e voltou a limpar a superfície tentando retirar dela uma poeira infinitesimal e invisível, com uma pompa e circunstância do último gesto do fabricante sobre sua obra prima.
Maravilhado e sentindo uma alegria quase infantil, Chico retirou-se andando de costas para a porta, como se não quisesse perder nada daquela visão maravilhosa. Sempre olhando para o carro, fechou o grande portão da garagem, pôs-lhe um cadeado e foi para casa caminhando à luz da lua que subia calmamente sua ladeira de escuridão.
À noite Chico voltou a sonhar com o carro. Sonhou que ele flutuava acima da estrada, como um pássaro, e nele Chico via o mundo ce as coisas bem pequenas como deveriam ser as coisas quando vistas de um avião. O sonho
era tão real que Chico acordou com a sensação de que havia voado. Não conseguiu mais dormir. Era hoje o grande dia. O dia em que seu carro ia ser inaugurado.
E nessa hora bateu em Chico a dúvida que nunca teve antes: e se a ignição não funcionasse? E se o motor o pegasse? Por via das dúvidas, iria mais cedo à oficina e lá faria o que seu orgulho de mecânico nunca permitiu que fizesse testar o carro antes da inauguração. Nada de mais. Experimentaria a ignição, ouviria o motor, sentiria o toque da transmissão. Afinal, o carro já estava pronto, e isso não iria ferir em nada seu orgulho. Pegou as chaves e foi para a oficina.
No caminho ele começou à pensar no passeio triunfal pelas ruas da cidade e ficou emocionado. Chegou a pensar se tudo isto não era, na verdade, um pesadelo. O sol começava a mostrar seu clarão ao nascente, quando Chico chegou à oficina e, com a calma que nunca teve, abriu a porta do galpão. Escancarou à porta e, após esperar algum tempo para que seus olhos se acostumassem à escuridão da oficina, olhou para sua maravilha. E gelou.
Seu carro não estava lá. Havia sumido. Desaparecera como por milagre. Nem rastro havia deixado, como se ele não houvesse feito um carro, mas um avião. Seu carro havia sido roubado.
Começou a correr para cima e para baixo, de forma desordenada, como se fosse um filhote desgarrado, procurando rastros de pneus, alguém que lhe desse uma notícia. Imaginou que poderia ser uma brincadeira de mau- gosto dos amigos. Mas o carro não estava lá.
Quando parou para acertar as ideias, olhando o galpão vazio, Chico, desesperado, começou a sentir que poderia ter perdido seu carro para sempre, pois, se alguém lhe tivesse pregado uma peça, vendo seu martírio e a sua agonia, já teria desistido da brincadeira. Alguma coisa dentro dele começou a desmoronar.
E Depois de perder as esperanças de ter seu carro de volta, resolveu procurá-lo pela vizinhança e depois aonde se possível chegar. Pálido, transtornado e com a voz embargada, Chico dizia para as pessoas que assistiam impotentes à sua desdita:
- Vou procurar meu carro e vou achá-lo nem que tenha de ir ao fim do mundo!
Desde o dia em que Chico iniciou sua busca, já se passaram vinte anos. Ainda hoje, passados tantos anos deste acontecido, não é raro que um ou outro viajante noturno cruze com um carro transparente e muito iluminado, com dois faróis azulados como fogos-fátuos, com um cromado
tão polido, que parecem duas luas, que nunca para, que não faz barulho e não tem motorista, seguido por uma figura pálida e transparente, que todos aqui sabem ser Chico Pontes ainda seguindo os rastros de seu artefato maravilhoso.
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