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De todas as doenças do espírito humano, a fúria de dominar é a mais terrível (Voltaire)

Ignorar a própria ignorância é a doença do ignorante (Amos Alcott)

Decifra-me
ou te devoro

fantástico

"Que dirá ela? Que dirá a horrenda consciência,  aquele espectro no meu caminho?" (William Chambarlain) 

 DOENÇA, SILÊNCIO OU SEGREDO?

(Geraldo Maciel)

Que tanto frio ele sente para andar com aquele capote pesado, feito de lã animal, quase uma crina, a cobrir-lhe o corpo todo, dos pés até o pescoço, como se aqui fosse um país de inverno rigoroso e baixas temperaturas? E por que quase não fala com as pessoas, e quando fala é só o mínimo, aquilo que não pode deixar de ser dito, coisas particulares, pessoais e de negócio, reduzidas ao sussurro? Sim, porque mudo de todo não é, que não usa a linguagem dos sinais e, as vezes, é possível ouvir sua voz baixa, seca e pausada. Solteiro, mora nos fundos do armazém, onde vive, negocia e ouve rádio.

Foi sempre assim? Uns dizem que não - já foi falante e loquaz e falava alto, até-, outros dizem que sim, - já o conheceram taciturno como é hoje -, desde menino era estranho e arredio. Uma coisa é certa. Ninguém nunca o viu sorrir.

O que guarda aquela capa? Que mal ou segredo ali se esconde? O que será? Uma doença? Uma deformidade? Ninguém sabe. Nunca foi visto nu, tomando banho ou trocando de roupa. Sob aquele capote pode haver tudo e não haver nada.

Uns dizem que a capa nada esconde, nada encobre. Dizem que ele a usa como uma espécie de luto, uma forma de mostrar pesar; desgosto por ter sido, um da, rejeitado pela moça que conseguiu acelerar seu coração numa disparada louca, que de tão louca lhe tirou parte do tino e do bom senso, e o lançou neste estado calamitoso e amedrontador?

Pode ser que sob o capote haja todos os segredos enormes, ou haja o negrume de sua ausência, forma e modo de ser dos zumbis e almas condenadas.

Também diziam que ele era um desses homens que carregam uma mulher dentro de si e sendo assim, sofria, pois pensa como homem e sente como mulher, e isto é coisa capaz de levar as pessoas que assim são ao mutismo, ao retraimento, à solidão.

Que outro qualquer segredo pode guardar aquela capa de crina e silêncio?

Um raboo, escamoso e de ponta bifurcada, próprios de anjos decaídos?

Um corpo ressecado, cinzento, pele grudada nos ossos?

Doença grande?

Purulências alastradas, dessas que escorrem plasma e pus, sem remédio nem alívio?

Um corpo coberto de escamas, todo o corpo?

Um grande lagarto e não um ser humano como outro qualquer?

Unhas fendidas, como um porco? Curvas como as de um gavião?

Tudo isso são perguntas. O resto são sussurros dos que dizem tê-lo visto tomando banho nos açudes, a altas horas d anoite.

A capa escode seu corpo peludo de um macaco.

Ele é um lobisomem que â noite sai para chupar o sangue de bois, jumentos, cabras e cabritos. 

O silêncio e a capa preta guardam esse grande segredo. Segredo que todos gostariam de desvendar.

segredo que pode ser um corpo sem pele, com a carne sangrando, como se houvesse sido esfolado, um castigo eterno para uma falta inominável.

E se tal capa escondesse somente um esqueleto guardando um coração pulsante?

Ou se nada de anormal houver por baixo desta capa, a não ser uma dor, somente uma dor, incessante e indefinida dor que muitos seres humanos carregam?

E alu, nunca um só dia se passou sem que alguém se perguntasse que segredo esconde a capa de crina de Francisco.

Esconde o medo de se ver decrépito?

Esconde a doença da velhice?

Esconde o desejo nunca satisfeito e que teima em nunca se ir?

Esconde a fome de um corpo, de um pecado?

Esconde o ódio, o mal amargo, o que trava a boa, turva os olhos e faz definhar?

Ou guarda um amor, como em um cárcere, prisioneiro?

Quando ele morreu, todos viram que sob a capa nada havia. Ela guardava apenas a ausência do seu corpo; ela cobria o nada, um vazio igual à noite que cobre os tempos; que seu rosto, única coisa que as pessoas sabiam ser real, era apenas uma máscara, agora rígida e caída a um canto, com um sorriso que Francisco nunca havia antes ostentado. 

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